sexta-feira, 4 de abril de 2008

Heidegger, Filósofo da Poesia, Poeta da Filosofia



Por Victor Emanuel Vilela Barbuy

Martin Heidegger é certamente o maior filósofo germânico do século XX e o maior filósofo germânico desde Nietzsche. Sua doutrina filosófica – assim como o Tomismo – instituiu, conforme observou Vicente Ferreira da Silva, “uma experiência pensante do Ser”, apresentando hodiernamente uma clara “vontade de radicar o pensamento em seu próprio domínio, que não é evidentemente o domínio da subjetividade, mas o domínio aberto do Ser” [1].
O existencialismo heideggeriano é imensamente superior ao “existencialismo de mesa de café” de Sartre, como bem ressaltou José Pedro Galvão de Sousa em sua belíssima homenagem póstuma a Heraldo Barbuy [2]. Enquanto o autor de “A náusea”, mais literato do que filósofo, manipulou, como sublinhou Heraldo Barbuy, “os temas heideggerianos em plano puramente humano, Heidegger depois de ‘Sein und Zeit’ se desenvolveu a si mesmo numa linha cósmica e poética” não por isso deixando de ser o grande “filósofo da angústia existencial, de que Sartre foi como que a expressão literária” [3].
O existencialismo do discípulo francês, convertido desde princípios da década de 1950 ao credo obscurantista de Marx [4], é um existencialismo que, consoante frisou Barbuy, “traduz a derrota, a falência, a fraqueza”. Já o existencialismo do Mestre alemão, adversário sincero do marxismo durante toda a vida, exprime, nas palavras de Barbuy, “a vitalidade do herói, tendido para o futuro, sereno diante da morte e disposto a salvar a grandeza final do existir humano” [5].
A filosofia existencial do Mestre de “Ser e Tempo” não é uma “lamentação sob os muros da ruína. Acima de todas as suas contradições”, como ressaltou Barbuy, “Heidegger é o filósofo da Poesia. Ele ressuscita o mito wagneriano, desenha o perfil do Herói, tenso na direção do futuro, atravessando o Nada, como Siegfried atravessou o fogo mágico. E sua lição é e esta: Não é na vida banal, mas na audácia angustiosa do Herói que repousa a grandeza final do existir humano [6].
Heidegger nasceu no vilarejo suábio de Messkirch, na Floresta Negra, a 26 de setembro de 1889, sendo filho de Friedrich Heidegger, sacristão e zelador de objetos sacros da Igreja de Sankt Martin (São Martinho), e de Johanna Heidegger, nascida Kempf. A Suábia é também a terra natal de Hölderlin, o profundo poeta de “A morte de Empédocles” e romancista de “Hyperion”, talvez o maior bardo de todas as Alemanhas, sobre quem Heidegger pronunciou, em Roma, a memorável conferência intitulada “Hölderlin e a essência da Poesia” [7].
Heidegger nasceu, como disse, em setembro de 1889. Cinco meses antes, mais precisamente a 20 de abril de 1889, nascera em Braunau am Inn, na divisa entre o Império Austro-Húngaro e o Reino da Baviera, aquele a quem Heidegger – bem como a esmagadora maioria do povo alemão – um dia veria como um Messias. E o próprio Heidegger, após o fim da II Guerra Mundial, buscando redimir-se de haver seguido aquele ex-pintor e arquiteto frustrado de Viena, lembrou, em carta ao estudante Hans-Peter Hempel, que enganos como aquele já haviam acontecido com “homens maiores” que ele: “Hegel viu em Napoleão o espírito do mundo e Hölderlin o viu como o príncipe da festa para a qual os deuses e Cristo eram convidados” [8].
Em “O caminho do Campo”, texto escrito no outono de 1948 e publicado m uma obra de autoria coletiva celebrando o centenário (1949) do falecimento do compositor Conradin Kreutzer (aliás parente distante de Heidegger), o Filósofo evoca, saudoso, passagens da infância e da mocidade em Messkirch, onde residia na casinha baixa do outro lado da Igreja de St. Martin, na praça que se abria em direção ao Castelo de Fürstenberg, erigido no século XVI [9]. “Do portão do Jardim do Castelo estende-se [o caminho] até as planícies úmidas do Ehnried. Sobre o muro, as velhas tílias do Jardim acompanham-no com os olhos, estenda ele, pelo tempo da Páscoa, seu claro traço entre as sementeiras que nascem e as campinas que despertam, ou desapareça, pelo Natal, atrás da primeira colina, sob turbilhões de neve” [10].
O caminho do campo fala somente enquanto homens nascido no ar que os rodeia forem capazes de escutá-lo. É em vão que o Homem, por meio de planejamentos, busca instaurar uma ordenação no orbe terrestre, se não for capaz de ouvir o apelo do caminho do campo. É perigoso que o Homem de nossos dias já não possa entender a linguagem de tal caminho, pois em seus ouvidos retumba o fragor das máquinas, que chega a tomar pela Divina Voz. Assim, o Homem se dispersa, se torna errante. O Simples passa a parecer uniforme e a uniformidade é entediante. O Simples se desvaneceu e sua silenciosa força se esgotou [11].
O número daqueles que ainda conhecem o Simples, o dom da Simplicidade, diminui velozmente. Mas os poucos que ainda o conhecem “serão, em toda a parte, os que permanecem. Graças ao tranqüilo poder do caminho do campo, poderão sobreviver um dia às forças gigantescas da energia atômica, que o cálculo e a sutileza do homem engendraram para com ela entravar sua própria obra” [12].
“... Das baixas planícies do Ehnried, o caminho retorna ao Jardim do Castelo. Galgando a última colina, sua estreita faixa transpõe uma depressão e chega às muralhas da cidade. Uma vaga luminosidade desce das estrelas e se espraia sobre as coisas. Atrás do Castelo alteia-se a torre da igreja de São Martinho. Vagarosamente, quase hesitantes, soam as badaladas das onze horas desfazendo-se no ar noturno. O velho sino, em suas cordas outrora mãos de menino se aqueciam rudemente, treme sob o martelo das horas, cuja silhueta jocosa e sombria ninguém esquece [13].
“... Tudo fala da renúncia que conduz ao Mesmo. A renúncia não tira. A renúncia dá. Dá a força inesgotável do Simples. O apelo faz-nos de novo habitar uma distante Origem, onde a terra natal nos é devolvida” [14].
Antes de encerrar o presente artigo, julgo oportuno tratar da posição de Heidegger perante o Cristianismo e, mais precisamente, o Catolicismo.
Filho, como disse, de um sacristão, Heidegger foi preparado para o sacerdócio, havendo, inclusive, entrado, em 1909, no noviciado da Sociedade de Jesus em Tisis, Feldkirch, Vorarlberg, Império Austro-Húngaro, ali permanecendo por não mais que duas semanas de se haver queixado de problemas de saúde. As queixas repetir-se-iam dois anos mais tarde, causando a interrupção de sua carreira sacerdotal [15].
Os primeiros artigos de Heidegger, de tom conservador e contrários ao modernismo católico, tão condenado pelo Papa São Pio X, foram publicados em revistas católicas. O primeiro deles foi sobre a inauguração, em Kreenheinstetten, do monumento a Abraham a Sancta Clara, célebre monge agostiniano suábio cujo verdadeiro nome era Johann Ulrich Megerle e que foi o mais notável pregador católico das Alemanhas durante o período barroco, bem como escritor de amplos recursos.
Havendo rompido com o sistema do Catolicismo em 1919 e chegado a atacar duramente o Cristianismo durante o período em que foi reitor da Universidade de Freiburg (Friburgo), Heidegger ia à missa até bem velho sempre que se encontrava em Messkirch, sentando-se na mesma cadeira do coro onde se sentava quando menino-sineiro [16].
O filósofo e intelectual católico Max Müller conta que, em passeios a pé, quando chegava com Heidegger a igrejas ou capelas, este dobrava os joelhos e molhava as mãos em água benta. Certa vez, indagou Müller a Heidegger se aquilo não era incoerência, já que Heidegger havia muito se afastara dos dogmas da Igreja. E Heidegger assim respondeu ao antigo aluno: “É preciso pensar historicamente. E onde tanto se rezou, o Divino está próximo de maneira muito especial” [17].
Por fim, o enterro de Heidegger foi um enterro religioso, conforme a vontade do Filósofo, que segundo alguns retornara ao Catolicismo e segundo alguns outros jamais perdera a Fé ou se livrara da visão católica do Mundo [18].
Ainda antes de encerrar os presentes escritos, considero necessário dedicar algumas linhas ao mais polêmico dos assuntos relacionados a Heidegger: a militância nacional-socialista [19].
Heidegger foi um fervoroso militante nacional-socialista e não apenas durante os dez meses em que, como reitor da Universidade de Freiburg, pugnou pela completa renovação da Universidade alemã, por meio de sua completa ideologização e pela instituição do chamado “Führerprinzip”. Heidegger militou no Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães até o seu trágico fim, jamais deixando de pagar a ele, até 1945, sua cotização voluntária.
Heidegger viu na revolução nacional-socialista uma revolução metafísica, uma “transformação total” do “’dasein’ alemão” [20], e no “Führer” – e somente nele - “a atual e futura realidade alemã e sua lei” [21]. Viu o Filósofo, ainda, na revolução nacional-socialista a única esperança de salvar a Europa do imperialismo norte-americano e do imperialismo russo-soviético e a única força capaz de resistir à funesta evolução do mundo contemporâneo, sendo esta “a verdade interior e a grandeza desse movimento” [22].
Ademais, Heidegger viu o nacional-socialismo como o único movimento capaz de realizar o que se chamou “Renascimento Alemão”, de restaurar o poder e a glória da Alemanha e o bem-estar de seu povoe de romper o ignóbil “Diktat” de Versalhes. E é forçoso reconhecer que, em tempo recorde, Hitler erradicou o desemprego, a inflação e a miséria, que atingiam níveis absurdos antes de sua subida ao poder; recolocou a Alemanha em sua antiga posição de maior potência econômica e militar da Europa e jogou na lata do lixo o “Diktat” de Versalhes.
Cumpre sublinhar, entretanto, que, a despeito de sua crença no “Führer” e no nacional-socialismo, Heidegger – que dedicara “Ser e Tempo” ao judeu Husserl, fora amante da judia Hannah Arendt e sofreu influências do meio-judeu Max Scheler – sempre criticou duramente as idéias racistas e biologicistas [23] tão caras aos principais teóricos do nacional-socialismo e, em especial, a Alfred Rosenberg, o autor de “O mito do século XX”, que, aliás, detestava Heidegger.
Já havendo escrito mais do que deveria, encerro meu singelo artigo sobre este nobre e autêntico homem da Floresta Negra, filho espiritual de Hölderlin e grande Filósofo da Poesia e Poeta da Filosofia que é bem provavelmente o maior poeta em prosa da língua alemã desde o autor de “Assim falava Zaratustra”.


NOTAS:

[1] Vicente Ferreira da Silva, “São Tomás e Heidegger”, in “Diálogo”, n. 6, São Paulo, fevereiro de 1957, p. 21.
[2] José Pedro Galvão de Sousa, “Senso comum e senso de mistério”, in “Coleção Tema Atual”, Rio de Janeiro, Presença Edições, s/d, p. 3. O mesmo texto também pode ser encontrado na “Revista Brasileira de Filosofia”, vol. XXX, fasc. 116, São Paulo, pp. 375-396 e em separata da mesma revista.
[3] Heraldo Barbuy, “Sartre e Heidegger, in “Diálogo”, n. 7, São Paulo, julho de 1957, p. 34. Também disponível em Heraldo Barbuy, “O problema do ser e outros ensaios”, São Paulo, Convívio/EDUSP, 1984, p. 207.
[4] Sobre o caráter religioso do marxismo, recomendo a leitura do livro de Heraldo Barbuy intitulado “Marxismo e Religião” (2ª ed., São Paulo, Convívio, 1977) e considerado por Gilberto de Mello Kujawski a “contribuição mais relevante em nosso meio intelectual para o exame do marxismo em alto plano de indagação” (Gilberto de Mello Kujawski, comentário a “Marxismo e Religião”, in “Diálogo”, n. 16, abril de 1964, p. 100).
[5] Heraldo Barbuy, “Sartre e Heidegger”, in “Diálogo, n. 7, São Paulo, julho de 1957, p. 37/ “O problema do ser e outros ensaios”, São Paulo, Convívio/EDUSP, 1984, p. 211.
[6] Idem, loc. cit..
[7] Disponível em “Cavalo Azul”, n. 6, São Paulo, s/d, pp. 3-17.
[8] Martin Heidegger, apud Rüdiger Safranski, “Heidegger, um mestre da Alemanha entre o bem e o mal”, trad. de Lya Luft, 2ª ed., São Paulo, Geração Editorial, pp. 276-277.
[9] Rüdiger Safranski, op. cit., p. 32.
[10] Martin Heidegger, “O caminho do Campo” (trad. de Ernildo Stein e José Geraldo Nogueira Moutinho), in “Cavalo Azul”, n. 4, São Paulo, s/d, p. 3. Também disponível em http://caminhodocampo.blogspot.com/2008/03/o-caminho-do-campo-martin-heidegger.html. Último acesso em 03/04/2008.
[11] Idem, p. 5.
[12] Idem, loc. cit..
[13] Idem, p. 6.
[14] Idem, loc. cit..
[15] Rüdiger Safranski, op. cit., p. 41.
[16] Idem, p. 76.
[17] Max Müller, apud Rüdiger Safranski, op. cit., p. 500.
[18] Thomas Sheeman, comentando uma carta escrita por Heidegger ao Pe. Krebs, seu amigo, explicando os motivos pelos quais se afastara do Catolicismo dogmático, observa que Heidegger não afirma, na carta, que perdeu a fé religiosa, rompeu com a visão católica do Mundo ou com os valores que nela encontrou, ou mesmo que abandonou a Igreja Católica, compreendida como comunidade de pessoas e rituais compartilhados, lembrando, em seguida, que Heidegger contaria, mais tarde, a um confidente, que jamais deixara a Igreja Católica (Thomas Sheeman, apud Luiz Hebeche, “Uma arqueologia da cura”. Disponível em http://www.cfh.ufsc.br/~nim/hebeche3.pdf. Último acesso em 03/04/2008).
[19] Sobre este assunto, recomendo a leitura de “Heidegger e o Nazismo”, obra do intelectual chileno Victor Farias que, a despeito de algumas falhas, traz uma boa análise da militância de Heidegger no movimento nacional-socialista (Victor Farias, “Heidegger e o Nazismo”, trad. de Sieni Maria Campos, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1988).
[20] Martin Heidegger (Discurso de Tübingen, 30/11/1933), apud Rüdiger Safranski, op. cit., p. 281.
[21] Idem (“Conclamação aos Estudantes Alemães”, 03/11/1933), apud Rüdiger Safraski, op. cit., loc. cit..
[22] Martin Heidegger (“Introdução à Metafísica”, 1935), apud Rüdiger Safranski, op. cit., p. 343.
[23] Vide, p. ex., Martin Heidegger, “Nietzsche”, vol. I, trad. de Pierre Klossowski, in “Bibliothèque de Philosophie”, Paris, Gallimard, 1971, pp. 402-410.


quinta-feira, 27 de março de 2008

O caminho do Campo - Martin Heidegger



Abro o presente blogue com a postagem do texto que lhe inspirou o nome. O texto, de autoria do brilhante filósofo alemão Martin Heidegger, foi escrito no outono de 1948 e publicado numa obra de autoria coletiva celebrando o centenário (1949) da morte do compositor Conradin Kreutzer, aliás parente distante de Heidegger. A presente tradução, feita por Ernildo Stein e José Geraldo Nogueira Moutinho, foi publicada no 4º número da revista "Cavalo Azul", dirigida pela poetisa e tradutora Dora Marianna Ferreira da Silva, viúva do grande filósofo Vicente Ferreira da Silva.





O CAMINHO DO CAMPO

Por Martin Heidegger




Do portão do Jardim do Castelo estende-se até as planícies úmidas do Ehnried. Sobre o muro, as velhas tílias do Jardim acompanham-no com o olhar, estenda ele, pelo tempo da Páscoa, seu claro traço entre as sementeiras que nascem e as campinas que despertam, ou desapareça, pelo Natal, atrás da primeira colina, sob turbilhões de neve. Próximo da cruz do campo, dobra em busca da floresta. Sauda, de passagem, à sua orla, o alto carvalho que abriga um banco esquadrado na madeira crua.
Nele repousava, às vezes, este ou aquele texto dos grandes pensadores, que um jovem desajeitado procurava decifrar. Quando os enigmas se acotovelavam e nenhuma saída se anunciava, o caminho do campo oferecia boa ajuda: silenciosamente acompanha nossos passos pela sinuosa vereda, através da amplidão da terra agreste.
O pensamento sempre de novo às voltas com os mesmos textos ou com seus próprios problemas, retorna à vereda que o caminho estira através da campina. Sob os pés, ele permanece tão próximo daquele que pensa quanto do camponês que de madrugada caminha para a ceifa.
Mais freqüente com o correr dos anos, o carvalho à beira do caminho leva a lembrança aos jogos da infência e às primeiras escolhas. Quando, às vezes, no coração da floresta tombava um carvalho sob os golpes do machado, meu pai logo partia, atravessando a mataria e as clareiras ensolaradas, à procura do estéreo de madeira destinado à sua oficina. Era lá que trabalhava solícito e concentrado, os intervalos de sua ocupação junto ao relógio do campanário e aos sinos, que, uns e outros, mantêm relação própria com o tempo e a temporalidade.
Os meninos, porém, recortavam seus navios na casca do carvalho. Equipados de banco para o remador e de timão, flutuavam os barcos no Mettenbach ou no lago da escola. Nesses folguedos, as grandes travessias atingiam facilmente seu termo e facilmente recobravam o porto. A dimensão de seu sonho era protegida por um halo apenas discernível, pairando sobre todas as coisas. O espaço aberto era-lhe limitado pelos olhos e pelas mãos da mãe. Tudo se passava como se sua discreta solicitude velasse sobre todos os seres. Essas travessias de brinquedo nada podiam saber das expedições em cujo curso todas as margens ficam para trás. Entrementes, a consistência e o odor do carvalho começavam a falar, já perceptivelmente, da lentidão e da constância com que a árvore cresce. O carvalho mesmo assegurava que só semelhante crescer pode fundar o que dura e frutifica; que crescer significa: abrir-se à amplidão dos céus, mas também deitar raízes na obscuridade da terra; que tudo que é verdadeiro e autêntico somente chega à maturidade se o homem for simultaneamente as duas coisas: disponível ao apelo do mais alto céu e abrigado pela proteção da terra que oculta e produz.
Isto o carvalho repete sempre ao caminho do campo, que diante dele corre seguro de seu destino. O caminho recolhe aquilo que tem seu ser em torno dele; e dá a cada um dos que o percorrem aquilo que é seu. Os mesmos campos, as mesmas encostas da colina escoltam o caminho em cada estação, próximos dele com proximidade sempre nova. Quer a cordilheira dos Alpes acima das florestas se esbata no crepúsculo da tarde, quer de onde o caminho ondeia entre os outeiros a cotovia da manhã se lance no céu de verão, que o vento leste sopre a tempestade do lado em que jaz a aldeia natal da mãe, quer o lenhador carregue, ao cair da noite, seu feixe de gravetos para a lareira, quer o carro da colheita se arraste em direção ao celeiro oscilando pelos sulcos do caminho, quer apanhem as crianças as primeiras primaveras na ourela do prado, quer passeie a neblina ao longo do dia sua sombria massa sobre o vale, sempre e de todos os lados fala, em torno do caminho do campo, o apelo do Mesmo.
O Simples guarda o enigma do que permanece e do que é grande. Visita os homens inesperadamente, mas carece de longo tempo para crescer e amadurecer. O dom que dispensa está escondido na inaparência do que é sempre o Mesmo. As coisas que amadurescem e se demoram em torno do caminho, em sua amplitude e em sua plenitude dão o mundo. Como diz o velho mestre Eckhart, junto a quem aprendemos a ler e a viver, é naquilo que sua linguagem não diz que Deus é verdadeiramente Deus.
Todavia, o apelo do caminho do campo fala apenas enquanto homens nascidos no ar que os cerca forem capazes de ouví-lo. São servos de sua origem, não escravos do artifício. Em vão o homem através de planejamentos procura instaurar uma ordenação no globo terrestre, se não for disponível ao apelo do caminho do campo. O perigo ameaça, que o homem de hoje não possa ouvir sua linguagem. Em seu ouvido retumba o fragor das máquinas, que chega a tomar pela voz de Deus. Assim o homem se dispersa e se torna errante. Aos desatentos o Simples parece uniforme. A uniformidade entedia. Os entendiados só vêem monotonia a seu redor. O Simples desvaneceu-se. Sua força silenciosa esgotou-se.
O número dos que ainda conhecem o Simples como um bem que conquistaram, diminui, não há dúvida, rapidamente. Esses poucos, porém, serão, em toda a parte, os que permanecem. Graças ao tranqüilo poder do caminho do campo, poderão sobreviver um dia às forças gigantescas da energia atômica, que o cálculo e a sutileza do homem engendraram para com ela entravar sua própria obra.
O apelo do caminho do campo desperta um sentido que ama o espaço livre e que, em momento oportuno, transfigura a própria aflição na serenidade derradeira. Esta opõe-se à desordem do trabalho pelo trabalho: procurado apenas por si, o trabalho promove aquilo que nadifica.
Do caminho do campo ergue-se, no ar variável com as estações, uma serenidade que sabe, e cuja face parece muitas vezes melancólica. Esta gaia ciência é uma sagesa sutil [1]. Ninguém a obtém sem que já a possua. Os que a têm, receberam-na do caminho do campo. Em sua senda cruzam-se a tormenta do inverno e o dia da messe, a irrupção turbulenta da primavera e o ocaso tranqüilo do outono; a alegria da juventude e a sabedoria da maturidade nela surpreendem-se mutuamente. Tudo porém se insere placidamente numa única harmonia, cujo eco o caminho do campo em seu silêncio leva de um para outro lado.
A serenidade que sabe é uma porta abrindo para o eterno. Seus batentes giram nos gonzos que um hábil ferreiro forjou um dia com os enigmas da existência.
Das baixas planícies do Ehnried, o caminho retorna ao Jardim do Castelo. Galgando a última colina, sua estreita faixa transpõe uma depressão e chega às muralhas da cidade. Uma vaga luminosidade desce das estrelas e se espraia sobre as coisas. Atrás do Castelo alteia-se a torre da Igreja de São Martinho. Vagarosamente, quase hesitantes, soam as badaladas das onze horas, desfazendo-se no ar noturno. O velho sino, em suas cordas outrora mãos de menino se aqueciam rudemente, treme sob o martelo das horas, cuja silhueta jocosa e sombria ninguém esquece.
Após a última batida, o silêncio ainda mais se aprofunda. Estende-se até aqueles que foram sacrificados prematuramente em duas guerras mundiais. O Simples torna-se ainda mais simples. O que é sempre o Mesmo desenraiza e liberta. O apelo do caminho é agora bem claro. É a alma que fala? Fala o mundo? Ou fala Deus?
Tudo fala da renúncia que conduz ao Mesmo. A renúncia não tira. A renúncia dá. Dá a força inesgotável do Simples. O apelo faz-nos de novo habitar uma distante Origem, onde a terra natal nos é devolvida.

[1] Literalmente: "Este alegre saber é das Kuinzige". Este termo dialetal, próprio da Suábia do Sul (onde se encontra Messkirch, cidade natal de Heidegger), corresponde etimologicamente a Keinnützig, "bom para nada", "próprio para nada", cujo sentido passou para o de "travesso", "malicioso", e finalmente hoje designa um estado de serenidade livre e alegra, que gosta de se ocultar, marcada por uma ironia afetuosa e por um toque de melancolia: melancolia sorridente, sabedoria que apenas se comunica discretamente nas palavras. Estas informações foram dadas pelo próprio autor a Adré Préau, tradutor francês deste texto, que em seu trabalho opta pela forma "sagesse malicieuse" (vide Martin Heidegger, "Questions III", Éditions Gallimard, 1966, Paris). Ao propor em português a tradução "sageza gentil", quisemos ressucitar um velho vocábulo corrente na língua do século XVI, cuja afinidade com o francês "sagesse" comunica um pouco do indefinível conteúdo da expressão dialetal preferida por Heidegger [NOTA DO TRADUTOR].