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quinta-feira, 27 de março de 2008

O caminho do Campo - Martin Heidegger



Abro o presente blogue com a postagem do texto que lhe inspirou o nome. O texto, de autoria do brilhante filósofo alemão Martin Heidegger, foi escrito no outono de 1948 e publicado numa obra de autoria coletiva celebrando o centenário (1949) da morte do compositor Conradin Kreutzer, aliás parente distante de Heidegger. A presente tradução, feita por Ernildo Stein e José Geraldo Nogueira Moutinho, foi publicada no 4º número da revista "Cavalo Azul", dirigida pela poetisa e tradutora Dora Marianna Ferreira da Silva, viúva do grande filósofo Vicente Ferreira da Silva.





O CAMINHO DO CAMPO

Por Martin Heidegger




Do portão do Jardim do Castelo estende-se até as planícies úmidas do Ehnried. Sobre o muro, as velhas tílias do Jardim acompanham-no com o olhar, estenda ele, pelo tempo da Páscoa, seu claro traço entre as sementeiras que nascem e as campinas que despertam, ou desapareça, pelo Natal, atrás da primeira colina, sob turbilhões de neve. Próximo da cruz do campo, dobra em busca da floresta. Sauda, de passagem, à sua orla, o alto carvalho que abriga um banco esquadrado na madeira crua.
Nele repousava, às vezes, este ou aquele texto dos grandes pensadores, que um jovem desajeitado procurava decifrar. Quando os enigmas se acotovelavam e nenhuma saída se anunciava, o caminho do campo oferecia boa ajuda: silenciosamente acompanha nossos passos pela sinuosa vereda, através da amplidão da terra agreste.
O pensamento sempre de novo às voltas com os mesmos textos ou com seus próprios problemas, retorna à vereda que o caminho estira através da campina. Sob os pés, ele permanece tão próximo daquele que pensa quanto do camponês que de madrugada caminha para a ceifa.
Mais freqüente com o correr dos anos, o carvalho à beira do caminho leva a lembrança aos jogos da infência e às primeiras escolhas. Quando, às vezes, no coração da floresta tombava um carvalho sob os golpes do machado, meu pai logo partia, atravessando a mataria e as clareiras ensolaradas, à procura do estéreo de madeira destinado à sua oficina. Era lá que trabalhava solícito e concentrado, os intervalos de sua ocupação junto ao relógio do campanário e aos sinos, que, uns e outros, mantêm relação própria com o tempo e a temporalidade.
Os meninos, porém, recortavam seus navios na casca do carvalho. Equipados de banco para o remador e de timão, flutuavam os barcos no Mettenbach ou no lago da escola. Nesses folguedos, as grandes travessias atingiam facilmente seu termo e facilmente recobravam o porto. A dimensão de seu sonho era protegida por um halo apenas discernível, pairando sobre todas as coisas. O espaço aberto era-lhe limitado pelos olhos e pelas mãos da mãe. Tudo se passava como se sua discreta solicitude velasse sobre todos os seres. Essas travessias de brinquedo nada podiam saber das expedições em cujo curso todas as margens ficam para trás. Entrementes, a consistência e o odor do carvalho começavam a falar, já perceptivelmente, da lentidão e da constância com que a árvore cresce. O carvalho mesmo assegurava que só semelhante crescer pode fundar o que dura e frutifica; que crescer significa: abrir-se à amplidão dos céus, mas também deitar raízes na obscuridade da terra; que tudo que é verdadeiro e autêntico somente chega à maturidade se o homem for simultaneamente as duas coisas: disponível ao apelo do mais alto céu e abrigado pela proteção da terra que oculta e produz.
Isto o carvalho repete sempre ao caminho do campo, que diante dele corre seguro de seu destino. O caminho recolhe aquilo que tem seu ser em torno dele; e dá a cada um dos que o percorrem aquilo que é seu. Os mesmos campos, as mesmas encostas da colina escoltam o caminho em cada estação, próximos dele com proximidade sempre nova. Quer a cordilheira dos Alpes acima das florestas se esbata no crepúsculo da tarde, quer de onde o caminho ondeia entre os outeiros a cotovia da manhã se lance no céu de verão, que o vento leste sopre a tempestade do lado em que jaz a aldeia natal da mãe, quer o lenhador carregue, ao cair da noite, seu feixe de gravetos para a lareira, quer o carro da colheita se arraste em direção ao celeiro oscilando pelos sulcos do caminho, quer apanhem as crianças as primeiras primaveras na ourela do prado, quer passeie a neblina ao longo do dia sua sombria massa sobre o vale, sempre e de todos os lados fala, em torno do caminho do campo, o apelo do Mesmo.
O Simples guarda o enigma do que permanece e do que é grande. Visita os homens inesperadamente, mas carece de longo tempo para crescer e amadurecer. O dom que dispensa está escondido na inaparência do que é sempre o Mesmo. As coisas que amadurescem e se demoram em torno do caminho, em sua amplitude e em sua plenitude dão o mundo. Como diz o velho mestre Eckhart, junto a quem aprendemos a ler e a viver, é naquilo que sua linguagem não diz que Deus é verdadeiramente Deus.
Todavia, o apelo do caminho do campo fala apenas enquanto homens nascidos no ar que os cerca forem capazes de ouví-lo. São servos de sua origem, não escravos do artifício. Em vão o homem através de planejamentos procura instaurar uma ordenação no globo terrestre, se não for disponível ao apelo do caminho do campo. O perigo ameaça, que o homem de hoje não possa ouvir sua linguagem. Em seu ouvido retumba o fragor das máquinas, que chega a tomar pela voz de Deus. Assim o homem se dispersa e se torna errante. Aos desatentos o Simples parece uniforme. A uniformidade entedia. Os entendiados só vêem monotonia a seu redor. O Simples desvaneceu-se. Sua força silenciosa esgotou-se.
O número dos que ainda conhecem o Simples como um bem que conquistaram, diminui, não há dúvida, rapidamente. Esses poucos, porém, serão, em toda a parte, os que permanecem. Graças ao tranqüilo poder do caminho do campo, poderão sobreviver um dia às forças gigantescas da energia atômica, que o cálculo e a sutileza do homem engendraram para com ela entravar sua própria obra.
O apelo do caminho do campo desperta um sentido que ama o espaço livre e que, em momento oportuno, transfigura a própria aflição na serenidade derradeira. Esta opõe-se à desordem do trabalho pelo trabalho: procurado apenas por si, o trabalho promove aquilo que nadifica.
Do caminho do campo ergue-se, no ar variável com as estações, uma serenidade que sabe, e cuja face parece muitas vezes melancólica. Esta gaia ciência é uma sagesa sutil [1]. Ninguém a obtém sem que já a possua. Os que a têm, receberam-na do caminho do campo. Em sua senda cruzam-se a tormenta do inverno e o dia da messe, a irrupção turbulenta da primavera e o ocaso tranqüilo do outono; a alegria da juventude e a sabedoria da maturidade nela surpreendem-se mutuamente. Tudo porém se insere placidamente numa única harmonia, cujo eco o caminho do campo em seu silêncio leva de um para outro lado.
A serenidade que sabe é uma porta abrindo para o eterno. Seus batentes giram nos gonzos que um hábil ferreiro forjou um dia com os enigmas da existência.
Das baixas planícies do Ehnried, o caminho retorna ao Jardim do Castelo. Galgando a última colina, sua estreita faixa transpõe uma depressão e chega às muralhas da cidade. Uma vaga luminosidade desce das estrelas e se espraia sobre as coisas. Atrás do Castelo alteia-se a torre da Igreja de São Martinho. Vagarosamente, quase hesitantes, soam as badaladas das onze horas, desfazendo-se no ar noturno. O velho sino, em suas cordas outrora mãos de menino se aqueciam rudemente, treme sob o martelo das horas, cuja silhueta jocosa e sombria ninguém esquece.
Após a última batida, o silêncio ainda mais se aprofunda. Estende-se até aqueles que foram sacrificados prematuramente em duas guerras mundiais. O Simples torna-se ainda mais simples. O que é sempre o Mesmo desenraiza e liberta. O apelo do caminho é agora bem claro. É a alma que fala? Fala o mundo? Ou fala Deus?
Tudo fala da renúncia que conduz ao Mesmo. A renúncia não tira. A renúncia dá. Dá a força inesgotável do Simples. O apelo faz-nos de novo habitar uma distante Origem, onde a terra natal nos é devolvida.

[1] Literalmente: "Este alegre saber é das Kuinzige". Este termo dialetal, próprio da Suábia do Sul (onde se encontra Messkirch, cidade natal de Heidegger), corresponde etimologicamente a Keinnützig, "bom para nada", "próprio para nada", cujo sentido passou para o de "travesso", "malicioso", e finalmente hoje designa um estado de serenidade livre e alegra, que gosta de se ocultar, marcada por uma ironia afetuosa e por um toque de melancolia: melancolia sorridente, sabedoria que apenas se comunica discretamente nas palavras. Estas informações foram dadas pelo próprio autor a Adré Préau, tradutor francês deste texto, que em seu trabalho opta pela forma "sagesse malicieuse" (vide Martin Heidegger, "Questions III", Éditions Gallimard, 1966, Paris). Ao propor em português a tradução "sageza gentil", quisemos ressucitar um velho vocábulo corrente na língua do século XVI, cuja afinidade com o francês "sagesse" comunica um pouco do indefinível conteúdo da expressão dialetal preferida por Heidegger [NOTA DO TRADUTOR].